ECONOMIA
Nº edição: 845 | Economia | 20.DEZ.13 - 20:30 | Atualizado em 20.12 - 20:38
Carga pesada
Entenda o jogo de interesses por trás da polêmica dos airbags e freios ABS, da elevação do IPI dos veículos e da queixa da União Europeia contra o Brasil na OMC
Por Luís Artur NOGUEIRA e Keila CÂNDIDO
Nas duas últimas semanas, a indústria automobilística foi frequentadora assídua do noticiário econômico. E pelo andar da carruagem vai continuar sob os holofotes da mídia nos próximos dias. Da obrigatoriedade da instalação de airbags e freios ABS nos veículos que saem das linhas de montagem a reclamações da União Europeia contra o Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC), o setor tem sido surpreendido por decisões inesperadas, declarações polêmicas e conflitos internos no governo federal. Tudo isso em meio a uma angustiante espera do anúncio sobre as novas alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que será feito ainda neste fim de ano.
Adeus Kombi?: reunião na segunda-feira 23 define o futuro da perua. Para o Contran, é o fim da linha
“Não estamos com tempo nem de preparar o peru do Natal”, diz um executivo do setor, irritado com tantas indefinições. A celeuma toda começou na primeira quinzena de dezembro, quando o ministro da Fazenda, Guido Mantega, levantou a possibilidade de adiar, por um ou dois anos, a obrigatoriedade da introdução de airbags e sistema ABS nos freios em todos os carros, a partir de 1º de janeiro. O argumento principal era que a desativação das linhas de produção de veículos antiquados e que não comportam esses equipamentos, como a Kombi e o Gol G4, da Volkswagen, e o Uno Mille, da Fiat, poderia gerar demissões nas fábricas.
Além disso, a elevação do preço dos carros por conta dos itens de segurança, que ficaria entre R$ 1.000 e R$ 1.500, segundo estimativas das montadoras, pressionaria a inflação oficial. “Há uma preocupação com o emprego e outra com o preço, que vai subir”, disse o ministro Mantega, na ocasião. A sinalização da Fazenda contrariou os técnicos do Ministério das Cidades, que saíram em defesa da manutenção do cronograma de implantação dos itens de segurança. Segundo o Centro de Experimentação e Segurança Viária (Cesvi), airbags e ABS podem evitar 500 mortes e 10,1 mil acidentes por ano.
“Se há uma redução dos acidentes de trânsito, o custo para o setor público com saúde também cai”, diz Alessandro Rubio, especialista em segurança viária do Cesvi. Na terça-feira 17, no entanto, o bom senso prevaleceu, após reunião de Mantega com o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, e representantes da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) e do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que havia feito lobby pelo adiamento. Ficou definido que a regra, acertada em 2009, vai realmente entrar em vigor após o Réveillon. Uma exceção, porém, ainda pode ser aberta nessa negociação: a veteraníssima Kombi.
De olho na segurança: Moan, da Anfavea (à esq.), e o ministro Mantega anunciam a obrigatoriedade de airbags
e freios ABS em 2014. As linhas de montagem já estão preparadas
Na segunda-feira 23, está marcada uma reunião em Brasília para tratar do assunto. “A Kombi não é uma caminhonete, não é um automóvel, é... uma Kombi”, disse Mantega, na semana passada. Subordinado ao Ministério das Cidades, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) refutou publicamente a proposta. “Seria um retrocesso a revogação da resolução, que tem como preocupação elevar o padrão dos carros”, afirmou Aguinaldo Ribeiro, ministro das Cidades. “Soluções para manutenção do emprego há diversas; para a vida das pessoas, não.” Procurada pela DINHEIRO, a Volkswagen, fabricante da perua, informou que, “se for confirmada alguma alteração oficial da legislação, a empresa irá avaliar a possibilidade de continuidade de produção da Kombi”.
DINHEIRO apurou nos bastidores que a polêmica pegou os diretores da Anfavea de surpresa e gerou um conflito dentro da entidade. De um lado, Fiat e Volkswagen, que teriam interesse em continuar produzindo os veículos sem os novos itens. De outro, principalmente as montadoras japonesas e coreanas, que não aceitam competir com carros mais baratos, desprovidos dos equipamentos obrigatórios. Presente à reunião em Brasília, o presidente da Anfavea, Luiz Moan, deixou claro que os fabricantes não solicitaram a postergação das regras. “Nós apenas pedimos para zerar a alíquota de importação de peças sem similar nacional”, disse Moan, que ainda não recebeu resposta.
O mal-estar entre as montadoras, porém, foi inevitável. “Ao intervir nessa questão o governo está afetando o equilíbrio competitivo entre as empresas”, afirma o ex-presidente da Ford, Luiz Carlos Mello, diretor do Centro de Estudos Automotivos. Para o executivo, a sensação de tentativa de quebra de contrato gerada pelo governo é negativa. “O que salva o Brasil dessa insegurança jurídica é o tamanho do seu mercado e isso, felizmente, vale mais para os investidores do que essas declarações desencontradas do governo.” O susto foi grande também para os fabricantes de autopeças.
A Bosch, que detém 50% do mercado de ABS no Brasil, investiu R$ 60 milhões, desde 2007, em suas linhas de produção, já prevendo o aumento da demanda. Ao saber da possibilidade de adiamento da norma do Contran, o presidente da empresa alemã na América Latina, Besaliel Botelho, desabafou: “Quem vai investir se o governo, na calada da noite, muda as regras do jogo?” Em nota, a empresa afirma que “a segurança dos usuários de veículos deve ser tratada com prioridade, visto que o ABS reduz entre 20% e 25% o espaço de frenagem e evita o travamento das rodas”. Para o presidente da consultoria ADK Automotive, Paulo Roberto Garbossa, o governo fez um “balão de ensaio” e teve de recuar diante da repercussão negativa.
“Os fabricantes de airbags e ABS investiram na produção e aí o governo dá um susto e diz que é brincadeira?”, questiona Garbossa.
Toda essa polêmica sobre o setor automotivo tem como pano de fundo sua crucial importância para o desenvolvimento do País. O setor abriga 155 mil trabalhadores diretos, representa 25% do PIB industrial e gera um efeito cascata em outros segmentos, como o siderúrgico, com forte impacto nos níveis de emprego e de inflação. O debate ocorre num momento em que a indústria aguarda ansiosamente a decisão do governo sobre o IPI. Em maio de 2012, o imposto foi reduzido drasticamente – chegando a ser zerado nos carros com motor 1.0 – para evitar uma forte desaceleração do setor.
Em janeiro deste ano, houve uma elevação parcial e agora uma nova rodada está prevista (leia quadro abaixo). Como não é mais possível evitar o impacto dos itens de segurança nos preços dos carros, os analistas acreditam que a alta do imposto será sutil para não piorar a inflação. “Projetamos um retorno gradual da alíquota”, diz Fabio Romão, economista da LCA Consultores, que prevê alta de 3,5% nos preços dos veículos em 2014. Desde 2008, por conta do aumento da concorrência, a inflação do carro acumula queda de 11,7%, enquanto a inflação oficial subiu 31,1%. O temor do ministro da Fazenda, portanto, é de perder um aliado no combate ao dragão inflacionário.
DISPUTA COMERCIAL O fim de ano ainda reservaria mais uma surpresa desagradável para a indústria automobilística brasileira. Na quinta-feira 19, a União Europeia questionou na Organização Mundial do Comércio (OMC) a política tributária brasileira contra a importação de veículos. O pedido de consulta, termo técnico que caracteriza a primeira fase de uma eventual queixa comercial, tem como alvo principal o programa Inovar-Auto, que concede benefícios tributários para automóveis produzidos no País. “Era previsível que os europeus iriam reclamar em algum momento”, diz Milad Kalume Neto, executivo da consultoria automotiva Jato Dynamics.
“Para coibir a entrada de importados, o governo colocou 30 pontos de IPI a mais como se fosse um imposto disfarçado de importação.” O ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, disse que o Brasil está analisando o caso e dará uma resposta à OMC em até 60 dias. “Estamos confiantes de que temos argumentos sólidos para provar nossa plena conformidade com as regras multilaterais de comércio”, afirma o chanceler. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) também saiu em defesa da política comercial brasileira e das montadoras. “Eu não vi na proposta brasileira nada que pudesse ensejar uma discussão nos termos propostos pelos europeus”, diz Robson Andrade, presidente da CNI.
“Faz parte da política de desenvolvimento de um setor muito importante no Brasil.” Em visita a Brasília na semana passada, o diretor-geral da OMC, o brasileiro Roberto Azevêdo, salientou que não poderia comentar o mérito do questionamento europeu, que inclui a isenção de impostos para produtos eletroeletrônicos na Zona Franca de Manaus. “Não é descabido haver esperança de que haja solução negociada”, disse Azevêdo. Se depender do habilidoso brasileiro, que há duas semanas protagonizou um acordo histórico em Bali, na Indonésia, Brasil e União Europeia não levarão adiante essa disputa comercial.
Colaborou: Denize BacoccinaFONTE REVISTA ISTO É DINHEIRO